O Blog Listas Literárias leu Perdi a Cabeça, de Nancy de Lustoza Barros e Hirsch publicado pela editora Scortecci; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 - Enquanto romance burguês - e tem aparecido
alguns - Perdi a Cabeça procura desempenhar determinado
papel, enquanto, assim como parece o Brasil, joga-se num passado mítico e de um
recorte bastante específico que acaba isolado numa bolha ínfima e privilegiada
dentro de um todo, maior e mais complexo, de modo que o romance soa nostálgico,
isso no conceito problemático de nostalgia;
2 - Tal mergulho no tempo é feito , diga-se, com
bastante sinceridade, pois a autor deixa claro em nota que "esta história
se refere a um período em que aparelho celular era algo do futuro, fumar não
era execrado, a lei seca e nem o politicamente correto tinham sido concebidos.
Também, o vírus da Aids não havia chegado ao Brasil". A nota, aliás, é de
interessante curiosidade, especialmente por incluir o politicamente correto ao
lado doutros comportamentos. Há na burguesia um levante recente contra o
politicamente correto, e compreendo que há pontos a serem discutidos na
questão, entretanto, em muitos casos em que se advoga contra ele trata-se de
barreiras a processos civilizatórios de avanço da sociedade, por isso questão
polêmica. Nesse aspecto há certa sensação de positivismo à época em que se
passa a narrativa, especialmente se atentarmos para a própria narrativa;
3 - Em resumo, o livro é em grandíssima parte este
mergulho nostálgico aos anos 80, e mais que isso, a um estrato bastante
reduzido da sociedade e da própria história, que afora algumas referências mais
pontuais, não ambienta com destaque a narrativa, pois que no centro de tudo
estão os costumes e as ações a partir de tais costumes;
4 - Para isso a autora constrói a sua narrativa a
partir do núcleo de uma família tradicional burguesa, mas especialmente sobre
os irmãos Vinícius e Letie, cujos comportamentos são aparentemente distintos,
mas que no fundo carregam ambos o egocentrismo natural dos abastados e
privilegiados. Ele num drama entre assumir ou não os negócios da família
enquanto impactado pelo "amor", e ela no melhor estilo Patricinhas de Beverly Hills que curtir a vida
doidamente junto com as amigas;
5 - Tudo isso acontecendo em meio a uma situação
peculiar a que todos são envolvidos, que inclusive procura dar notas de
narrativa policial ao romance, mas que não se confirmam. A narrativa se passa
boa parte no hospital da cidade por causa de uma acidente em que Letie e as
amigas acabam se envolvendo, e onde Vinícius vindo da Europa terá de decidir
seu futuro. É nesse ambiente que a existência de segredos surge, bem como o
próprio comportamento irresponsável muitas vezes de suas personagens, aliado a
certa propaganda de determinados costumes;
6 - Na verdade é que tudo parece deslocado no
tempo, o que nos causa estranheza. Casamentos arranjados, bebedeiras ao
volante, a vida livre de privilegiados que não precisavam "dividir" o
país, a banalidade dos afortunados, enfim, tudo isso sob tintas positivistas
neste leitor, pelo menos, causaram certo desconforto e, por mais que seja o
retrato de determinado período e dum estrato bastante minoritário, faz com que
o livro pareça um tanto ultrapassado, impressão que cresce com o final bastante
semelhante aos antigos melodramas;
7 - Todavia, tais questões são de escolha estética
e política de quem escreve, e não há aqui qualquer julgamento de valor, pois
podem ser discutidos a partir dos elementos da estrutura literária. Nesse
sentido algumas questões devem ser levantadas. Primeiro que o romance fica
muito a mercê dos costumes e das intenções de tal abordagem, de modo que o
enredo se fragiliza por promessas de tensionamento que não avançam;
8 - Além disso, há certa desproporcionalidade na
ação que às vezes dá um baque na verossimilhança interna, como as participações
policiais na narrativa, ora exageradas, ora tímidas. Aliás, é interessante
observarmos certa naturalização do comportamento policial pouco ortodoxo,
carregado de privilégios e tratamentos diferenciados, o que se colocado na obra
de modo crítico, poderia ser virtude. Entretanto, como muito das naturalizações
de comportamentos que hoje são questionados pela sociedade, há no positivismo
de alguns olhares do romance que promovem certa alienação;
9 - Somado a isso, penso que os personagens,
especialmente os protagonistas carecem de força, ou mesmo de empatia. Todos
praticamente, serviçais do ego, sem aventuras psicológicas profundas,
fortemente mimados pelos privilégios sociais que gozam. Isso a certo modo, de
maneira positiva faz saltar ao espelho as contradições que certa cegueira
enevoa ao esconder tudo aquilo que existe para além do universo dos Avoeiros Bogado;
10 - Enfim, Perdi a cabeça é
romance escrito com o domínio da linguagem, mas cuja mensagem e estética
escravas de uma nostalgia que não abre-se ao novo mundo parece criar uma
prisão, uma bolha em que todos são felizes e cujos dramas não passam de ciscos
sob os tapetes de mansões, aqui ou na Europa. Isso tanto desconecta-se dos
tempos presentes, como, paradoxalmente, muito nos diz do agora.
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