Martha Medeiros - Não é apenas uma casa: é um refúgio sagrado
Comover-se com a destruição da casa de um escritor
parece uma reação elitista, uma vez que a casa de
um comerciante ou a casa de uma costureira podem ter o mesmo valor emocional, e
têm. Casas são refúgios sagrados. Todos nós, não importa a profissão, criamos
nossa história de vida entre quatro paredes. Mas tento traduzir aqui a
peculiaridade da situação. Escritores são filhos da solidão. Não conseguem
realizar seu trabalho sem ferramentas imateriais como a quietude, as
lembranças, a contemplação do universo de um ponto de vista distanciado.
É dentro de sua casa que escritores encontram a si mesmos,
profundamente. A casa nutre seus sentimentos e os preserva dos ruídos, das
violências, das interferências que tanto dispersam a imaginação. A casa não
apenas protege, mas se confunde com o próprio escritor. É poderosa na evocação
daquilo que será transformado em texto. É preciso que o escritor se feche em si
mesmo para só então abrir-se em palavras, frases, livros.
Isso tudo soa romântico e fora
de moda, eu sei. Escritores hoje anotam suas ideias no celular, durante o
trajeto do metrô. Escrevem em computadores, dentro de imóveis alugados,
apertados, sem um pátio ou um lago à vista que capture o olhar. Sem nenhuma
paisagem que ofereça a eles a beleza e a calma necessárias para aprimorar a
reflexão, escutar sua voz interna. Escritores são interrompidos de 10 em 10
minutos pelos sinais de WhatsApp, pelas entradas de mensagens e chamadas de vídeo. Se
desconcentram com o barulho do trânsito, das betoneiras, da obra no andar de cima. São escritores
de apartamento.
Ainda assim, a solidão e o silêncio continuam sendo a
matéria-prima vital para a realização da literatura. Se hoje não conseguimos ter o escritório dos sonhos –
isolado de tudo – ao menos podemos contar com um abajur com luz cálida, uma
mesa sólida que apoie cadernos e canetas para anotações, um vaso de flores que
nos pareça um jardim.
Esses objetos aparentemente insignificantes disparam
emoções pessoais, confortam a memória, dão significado à existência, que é a
base de lançamento da criação. Quando tudo isso some, some junto a história que
o escritor não contou: a história dele próprio, que fica entranhada nas
janelas, portas, paredes.
Não sei os pormenores da demolição da casa de Caio Fernando Abreu. Em tudo há interesses diversos, verdades múltiplas. Mas
compreendo bem a sensação de luto. Em vez de transformado em local de culto e
inspiração, seu retiro pessoal abrigará agora, talvez, 12 andares, 50
apartamentos, 130 pessoas entrando e saindo com pressa pela garagem.
É a reprise da morte, não só a de Caio, mas a do
refinamento, a da arte e a do espírito de um lugar – que falecem todos os dias.
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