Wednesday, 23 March 2011

Artigo publicado na Cavalo Árabe deste mês

Ultrapassar barreiras

Houve um rei britânico que costumava dizer: “Nunca viaje para o exterior. É um lugar terrível. Eu estive lá e eu sei”. Nada mais sábio, alguns concordarão. Porém, o fato do cavalo Árabe brasileiro ter passaporte recheado de carimbos os mais diversos, obriga-nos a acompanhá-lo, vez por outra, por prazer, de férias ou a trabalho, dando-se aquela “esticadinha” providencial combinada a um compromisso qualquer.

Deixa-se tudo arrumado em casa, as crianças com a sogra, as plantas com a vizinha, o gato no spa (aí, meninas, este último com sentido duplo, tá?). Dentro de um táxi, enquanto o motorista fala sozinho, você tenta lembrar se fechou a janela da sala e se puxou o freio de mão do carro na garagem, para atrapalhar o vizinho do andar de cima, porque ele merece, como troco do barulho que sempre apronta. Um casaco confortável no banco, a mala fazendo barulhinho agradável, demonstrando presença lá atrás, a mão toca o bolso com o passaporte e o bilhete impresso pelo computador... e você se tranquiliza.

O trânsito de sexta-feira à noite não atrapalha, porque se faz o cálculo de trás pra frente: hora do embarque, menos as duas recomendadas para voos internacionais e mais uma no tempo usual de trajeto até o aeroporto. Você acreditava que daria com folga e acaba sendo em cima do laço! Mas, até então, não há crise.

Você sabia que alguns calçados têm um metal na sola para dar formato? É o tipo de informação preciosa ao passar pelo detector de metais do aeroporto. O fulano só falta abaixar as calças pra fazer o alarme irritante parar de soar, quando alguém o lembra de tirar o sapato. Meias no chão – use meias, é recomendável naquele piso sujinho - alívio puro estampado no rosto, você cata seus objetos e respira fundo: hora de entrar, realmente, no espírito da viagem. Olhar as modas, jogar um sudoko, fazer aquelas últimas ligações, talvez gastar um dinheirinho no duty free...

Para que se deixe uma pessoa estranha entrar na sua casa, é preciso tomar algumas precauções, naturalmente. É com este espírito que os países procedem com os visitantes, ao pedir seu passaporte, perguntar o motivo da viagem, o tempo de permanência, etc. Algumas polícias de fronteira são mais exigentes do que outras e podem ser pouco ou nada simpáticas com o forasteiro, que, pobrezinho, pode ter passado treze horas dentro de um avião, com seus movimentos cerceados, partilhando um ar viciado com desconhecidos, quiçá com fome e frio, apreensivo pelo pouco conhecimento de línguas... Há pessoas que simplesmente congelam na frente da autoridade e esquecem o Espanhol básico do curso vapt-vupt que promete milagres. Fica-se olhando para o policial e nada, nem o Português aprendido desde pequenininho, sai de sua boca.

Nesses locais de inspeção, é uma loteria se você vai se deparar com uma pessoa equilibrada ou não. Há o grande perigo de aflorarem preconceitos de cor, de religião, de sexo. A senhora da frente, coitada, enfrentou uma policial na chegada à Itália e acabou sendo levada por inspetores, sabe-se lá para onde. O povo brasileiro é muito simpático aos italianos e vice-versa, mas mulheres sozinhas podem passar maus bocados para entrar no país.

Na Turquia, ainda na época da “guerra fria”, o fulano chegou e, apesar do que a agência de viagem garantira, o guardinha cismou que precisava ter um visto. Isso foi o que ele acha que entendeu. Foi levado a uma salinha, o policial pediu dinheiro e colou uns selos sem-vergonha no passaporte do cara. A mulher dele com todas as malas, durante esse tempo todo, sozinha no saguão de chegada, ignorando o que se passava, sem falar a língua local, só lembrava do “O Expresso da Meia-Noite”: quem é das antigas sabe do filme que se fala. Pra quem é novinho: pode assistir, até Oscars a produção ganhou, mas eu não recomendo.

Muito cuidado com o que se fala na fronteira. Anos atrás, dois ciclistas brasileiros carregavam uma bomba para encher pneus. O policial federal americano perguntou o que era o objeto e eles responderam o que achavam ser o óbvio: “a bomb”. Não era. Acabaram presos.

O estudante brasileiro visitou a Disneylândia ano passado e, na saída dos EUA, alguém fez alguma bobagem com o visto dele. Para esta viagem agora, o consulado americano emitiu uma correção – gente, eles admitiram um erro!!! Que espanto. -, mas vai explicar isto ao federal que acordou às quatro da manhã para receber os amassados viajantes. O inglês do garoto, claro, falhou na hora. Para-se tudo, chama-se a tradutora – coisa rara, mas providencial. Ela procura entender o que se passa e transmitir para o homem com o cabelo espetado para cima, cheio de gel e de brinquinho brilhando numa orelha. Ele mexe no computador e o sistema trava. Lá vem o chefe dele, entra na cabine, conta-se a história mais uma vez, cutuca-se as teclas da máquina dos infernos e parece que a coisa funciona. A cantilena recomeça: veio fazer o quê, fica quanto tempo, onde, coloque os quatro dedos da mão direita na célula fotoelétrica, agora o polegar, mão esquerda... Na hora da fotografia, você fica na dúvida se deve sorrir ou não.

Talvez o grande mal da humanidade seja a intolerância. A falta de compreensão das diferenças, o não deixar ser, não deixar acontecer. O desrespeito ao próximo. Daí, que, desde que uns intolerantezinhos resolveram explodir aviões nos EUA, os americanos, que nunca foram muito flexíveis com o desconhecido, radicalizaram, certos ou errados. Passar pelo controle da polícia federal na terra do Tio Sam é experiência digna de filme hollywoodiano ou tropa de elitiano.

Já recomendei usar meias, lá em cima, certo? Muito bem, anote aí: se você espalha seu dinheiro, cartão de crédito, talão de cheques pelos bolsos, para tentar enganar a bandidagem no Brasil, desista. Coloque tudo numa carteira, ou você vai ter que segurar aquele “bolo” todo na mão, na hora do raio-X. Se você quiser passar com nota 10 na revista, não use: cinto, relógio, cordões, pulseiras, anéis, óculos. Impossível, né? Sabe aquela capinha bonitinha que protege seu computador pessoal? Nem pensar, deixe em casa, ele só atrapalha na inspeção. O remédio da pressão, o homeopático para dormir, o levanta-leão: coloque-os num saquinho plástico, daqueles de guardar comida congelada, que tem fecho. Nada de carregar creme, perfume, pasta de dente de embalagens grandes na bagagem de mão. É proibido. Você vai ficar sem eles e lamentar o dinheiro gasto se forem artigos importados. Uma moça passou a viagem toda chorando os antioxidantes de grife que perdeu. Agora, cá entre nós, quem fica com aquelas coisas todas, hein? Deve ter alguém se dando bem por aí. Os fabricantes de canivete suíço, porém, devem estar à beira da falência, porque ninguém os compra mais: se você não pode levá-los à mão, de que adiantam?

Imagine que você chegou a um aeroporto nos Estados Unidos e ainda tem uma conexão até seu destino final. É preciso passar pela polícia federal, apresentar seus documentos e, entre outras coisas, assinar um formulário que pergunta se você esteve em contato com animais de fazenda – qual é a resposta certa, cara-pálida? - Daí, ao ser liberado, pegue sua bagagem na esteira (Papai Noel existe), procure o local certo para despachá-la novamente (o Coelhinho da Páscoa traz ovinhos de chocolate) e dirija-se ao seu portão de embarque, logo ali, ó (a Fada do Dentinho te dá um presentinho). Ah, claro, em frente tem uma barreira de inspeção, com raio-X e outras cositas mas.

Ao comprar o bilhete aéreo, você percebeu que só tem uma hora e meia entre a chegada em solo americano e a saída do próximo voo. Isso dá uma certa preocupação, não há muito espaço para os atrasos habituais, a distância entre terminais de aeroportos em geral é grande, mas o agente de viagem jurou de pés juntos que é o sistema que estabelece a sequência e o tempo na emissão da passagem, que não há o que fazer. A você só resta rezar pro lobisomem não vir te pegar.

O portão é no terminal B, você desceu no D. Corre, coração acelerado. Na barreira, pessoas tiram roupas, sapatos, computadores, relógios, documentos e as jogam dentro bandejas plásticas. Há uns trinta agentes federais entre homens e mulheres dando instruções. Gritando instruções! Você é organizado, já passou por isso antes, mas é sempre um processo atabalhoado, por causa da falta de tempo e do ambiente de desconfiança geral. Tem alguém aos berros e você tenta ver quem é. Um homem grande pra caramba te encara e é contigo mesmo que ele está se esgoelando. Eu! Quem, eu? Eu tirava estrelinha dourada na escola por bom comportamento e tem alguém me passando pito?! “A senhora tem uma blusa aí em baixo?” Claro que sim, ô palhaço! Você não fala, mas pensa. “Tire o casaco!”. Calma, xará, qualé, uma coisa de cada vez, seu histérico desqualificado! Esta parte está censurada, porque não foi nada disso que você pensou. Foi bem pior.

Você dá adeus aos seus bens mais preciosos, que correm na esteira do raio-X, espalhados em várias bandejas. O agente federal continua gritando, quer saber se não ficou algo em seus bolsos. Negue, negue, negue!!! Daí é a sua vez de ser “escaneado” pelo aparelho que tem a mesma visão que o Super-homem: mostra tuuudo. Atenção: se você usa óculos, eles te mandam colocar antes, mas os óculos estão na bandeja, na esteira, lá vai ele! Alguém os entrega de volta. “Levante os braços, aguarde”. Dá vontade de rir: vão te fotografar nu, com os óculos pendurados no nariz: ridículo precioso!

Ao sair do aparelho, a policial loura te diz para aguardar um minuto e relaxar. Tás brincando! O avião vai te largar e a conexão mais cedo é só dali a três horas. Suas coisas começam a se empilhar no final da esteira. Outra federal, negra e maquiada ao exagero, grita: “mais a frente, mais a frente”. Cate a bolsa, o casaco, o dinheiro, o cartão (estava tudo solto, lembra? distribuído pra enganar o ladrão), o computador, os sapatos, o cinto, enfim. Desvie do imenso cão farejador seguro por policial, arrume-se, reganhe sua dignidade e corra (kkkkk). No portão de embarque, estão chamando seu nome pelo microfone e dentro do avião as caras são feias porque você atrasou o voo.

Bem-vindo à terra dos homens livres.

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