Monday 13 November 2023

Crítica a Perdi a Cabeça




Réplica às considerações do Blog Listas Literárias sobre o romance da autora brasileira Nancy de Lustoza Barros e Hirsch: Perdi a Cabeça.


1 - Enquanto romance burguês - e tem aparecido alguns - Perdi a cabeça procura desempenhar determinado papel, enquanto, assim como parece o Brasil, joga-se num passado mítico e de um recorte bastante específico que acaba isolado numa bolha ínfima e privilegiada dentro de um todo, maior e mais complexo, de modo que o romance soa nostálgico, isso no conceito problemático de nostalgia;

Sim, é burguês, é nostálgico (problemático por quê? O tom da história não tem nada de sombrio), sim, o passado é mítico – romances têm o aval para usar mitos. Sim, houve uma escolha proposital de um recorte do tempo para posicionar a história. Pergunta que não quer se calar: por acaso o crítico leu alguma vez livros de Nora Roberts, Nicholas Sparks, Janet Evanovich? Parece-me que ele está totalmente desconectado deste tipo de literatura, altamente bem-sucedida. Cabe notar que não me coloco no mesmo patamar destes fenômenos, sou mera copiadora pretenciosa.

2 - Tal mergulho no tempo é feito, diga-se, com bastante sinceridade, pois a autora deixa claro em nota que "esta história se refere a um período em que aparelho celular era algo do futuro, fumar não era execrado, a lei seca e nem o politicamente correto tinham sido concebidos. Também, o vírus da Aids não havia chegado ao Brasil". A nota, aliás, é de interessante curiosidade, especialmente por incluir o politicamente correto ao lado doutros comportamentos. Há na burguesia um levante recente contra o politicamente correto, e compreendo que há pontos a serem discutidos na questão, entretanto, em muitos casos em que se advoga contra ele trata-se de barreiras a processos civilizatórios de avanço da sociedade, por isso questão polêmica. Nesse aspecto há certa sensação de positivismo à época em que se passa a narrativa, especialmente se atentarmos para a própria narrativa;

De onde o crítico tirou a ideia de que há alguma revolta contra os processos atuais civilizatórios? A nota tem a clara intenção de alertar: “não faça isto em casa”! ou seja, não aprova a promiscuidade que eventualmente provocaria uma exposição ao vírus HIV.

3 - Em resumo, o livro é em grandíssima parte este mergulho nostálgico aos anos 80, e mais que isso, a um estrato bastante reduzido da sociedade e da própria história, que afora algumas referências mais pontuais, não ambienta com destaque a narrativa, pois que no centro de tudo estão os costumes e as ações a partir de tais costumes;

Bó! Por acaso o Senhor Crítico leu algum romance não biográfico de Nelson Motta? Sem ousar me comparar a ele, pelamordedeus, mas pelo recorte no tempo. Ou será que assistiu à série Bossa Nova? Vá se instruir, garoto!

4 - Para isso a autora constrói a sua narrativa a partir do núcleo de uma família tradicional burguesa, mais especialmente sobre os irmãos Vinícius e Lettie, cujos comportamentos são aparentemente distintos, mas que no fundo carregam ambos o egocentrismo natural dos abastados e privilegiados. Ele num drama entre assumir ou não os negócios da família enquanto impactado pelo "amor", e ela no melhor estilo Patricinhas de Beverly Hills quer curtir a vida doidamente junto com as amigas;

Verdade! O crítico claramente escolheu se opor a retratos propositalmente emoldurados pela burguesia e pelo dolce far niente.

5 - Tudo isso acontecendo em meio a uma situação peculiar a que todos são envolvidos, que inclusive procura dar notas de narrativa policial ao romance, mas que não se confirmam. A narrativa se passa boa parte no hospital da cidade por causa de um acidente em que Lettie e as amigas acabam se envolvendo, e onde Vinícius vindo da Europa terá de decidir seu futuro. É nesse ambiente que a existência de segredos surge, bem como o próprio comportamento irresponsável muitas vezes de suas personagens, aliado a certa propaganda de determinados costumes;

Propaganda de determinados costumes ou relato de tais costumes?

6 - Na verdade é que tudo parece deslocado no tempo, o que nos causa estranheza. Casamentos arranjados, bebedeiras ao volante, a vida livre de privilegiados que não precisavam "dividir" o país, a banalidade dos afortunados, enfim, tudo isso sob tintas positivistas neste leitor, pelo menos, causaram certo desconforto e, por mais que seja o retrato de determinado período e dum estrato bastante minoritário, faz com que o livro pareça um tanto ultrapassado, impressão que cresce com o final bastante semelhante aos antigos melodramas;

Eu tive duas colegas de escola cujos casamentos foram arranjados pelas famílias naquela época e depois, mais recentemente, um amigo se sujeitou a isto. Um conhecido combinou com a noiva que se casariam para se libertarem das exigências familiares. Uma amiga aceitou casar-se como disfarce para o amigo gay. O crítico flagrantemente não é uma pessoa do mundo ao negar os afortunados, os melodramas da vida real, o comportamento irresponsável, a burguesia e o egoísmo das pessoas.

7 - Todavia, tais questões são de escolha estética e política de quem escreve, e não há aqui qualquer julgamento de valor, pois podem ser discutidos a partir dos elementos da estrutura literária. Nesse sentido algumas questões devem ser levantadas. Primeiro que o romance fica muito a mercê dos costumes e das intenções de tal abordagem, de modo que o enredo se fragiliza por promessas de tensionamento que não avançam;

Ok.

8 - Além disso, há certa desproporcionalidade na ação que às vezes dá um baque na verossimilhança interna, como as participações policiais na narrativa, ora exageradas, ora tímidas. Aliás, é interessante observarmos certa naturalização do comportamento policial pouco ortodoxo, carregado de privilégios e tratamentos diferenciados, o que se colocado na obra de modo crítico, poderia ser virtude. Entretanto, como muito das naturalizações de comportamentos que hoje são questionados pela sociedade, há no positivismo de alguns olhares do romance que promovem certa alienação;

A polícia era ontem e é hoje isenta e ortodoxa? Em que país este crítico mora?

9 - Somado a isso, penso que os personagens, especialmente os protagonistas carecem de força, ou mesmo de empatia. Todos praticamente, serviçais do ego, sem aventuras psicológicas profundas, fortemente mimados pelos privilégios sociais que gozam. Isso a certo modo, de maneira positiva faz saltar ao espelho as contradições que certa cegueira enevoa ao esconder tudo aquilo que existe para além do universo dos Avoeiros e Bogado;

Verdade.

10 - Enfim, Perdi a cabeça é romance escrito com o domínio da linguagem, mas cuja mensagem e estética escravas de uma nostalgia que não se abre ao novo mundo parece criar uma prisão, uma bolha em que todos são felizes e cujos dramas não passam de ciscos sob os tapetes de mansões, aqui ou na Europa. Isso tanto desconecta-se dos tempos presentes, como, paradoxalmente, muito nos diz do agora.

Bolha propositalmente criada e colocada no passado para justamente contrastar com os dias de hoje. Mas agradeço o “domínio da linguagem”. Afinal foi o que ficou de positivo da apreciação feita.

Minhas conclusões: mais uma vez, não me dou bem com críticas. Quem sabe com mais tempo e exposição? Porém, tenho os seguintes comentários: o crítico – como todos eles, ou seja, mais um da mesma escola – tem em alta conta sua erudição e se perde com frases de efeito nas quais o sentido acaba escapando ao leitor comum interessado numa história. Creia-me, meu senhor, o mundo caracterizado em Perdi a Cabeça existiu e ainda existe, ele apenas lhe é desconhecido. O crítico acha estranho o que não lhe é conhecido: “Narciso acha feio o que não é espelho”, com a licença de Caetano Veloso na composição daqueles anos em que o livro situa sua história.



No comments:

Post a Comment