O livreiro
Segunda-feira no Rio. Chuva repentina. As pessoas correm para se abrigar. Toldos e marquises cuidam dos mais apressados. Para quem tem um pouco mais de tempo, na hora mole que sucede o almoço, uma livraria é uma janela. Enquanto a água segue enxaguando as ruas, uma caminhada pelas seções, pelas mesas de novidades, é um modo de se afastar da correria dos passantes, e projetar-se em outros mundos. Novas temperaturas, idiomas, paisagens que se abrem nos retirando, mesmo que brevemente, de nossas agendas, calendários, compromissos.
O livreiro II
Sento-me no sofá e reparo. Mais do que folhear e ler as primeiras páginas da obra escolhida, fico atento ao livreiro que atende aos clientes. Seu apelo é cinematográfico. Seus resumos parecem um trailer que resume com notas de suspense o livro sugerido. Sua articulação é de fabulador. Conta sem contar, situa, rabisca os traços dos personagens que os fazem mais atraentes. E segredos. Pequenas confidências sobre o trabalho do autor. A carpintaria do livro. O processo árduo de sua urdidura. Aos poucos fecho o livro sobre o colo.
O livreiro III
Pelo visto dá certo. Em meia hora, a pequena fila no caixa, as sacolas nas mãos, demonstram o resultado prático de seu ofício. O livreiro é um profissional raro. Um consultor que entrega o que nem sabemos procurar. Um tateador de vontades insuspeitas. Que vende a possibilidade de nos surpreender. Não é à toa que pareça estar em extinção. Ou, ao menos, de cada vez mais soar anacrônico, em meio ao e-commerce, das mega-livrarias e lojas de Shopping Center. Como toda vocação, o livreiro não é passível de padronização.
O livreiro IV
Há uma ligação que une a cidade e os livros. O comércio de rua e o leitor. O leitor e o livreiro. Um tempo humano. Humano pelo tamanho dos passos que nos levam pelas calçadas. Pela disponibilidade de entabular conversas. De ouvir com atenção e prazer o que nos contam. O livreiro domina esse tempo. É em sua memória que busca as referências, e não raro, em suas associações mentais, entrega-nos mais do que pedimos. Trata-nos como seres cultivados. Parte do princípio que dividimos referências e que temos o gosto burilado. Ninguém que goste realmente de ler espera outro comportamento. É preciso desconfiar da própria ignorância, é óbvio, mas é preciso lutar diariamente contra ela.
O livreiro V
Evitar o livro como commodity. Mercadoria com função pragmática. Operação complexa no mundo atual, regido pela banalidade. De excessos e pouca profundidade. O livreiro é como uma âncora desses princípios. Tão ou mais necessário do que os espaços que o abrigam. Esses são vendidos, abrem filiais, reproduzem-se em franquias. O livreiro não. É feito de idiossincrasias e subjetividade. A mesma matéria que ocupa o entre capas que folheia, apresenta, e que com cuidado respeita as peculiaridades.
Por José Godoy: escritor e editor. Mestre em teoria literária pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), colabora com diversos veículos, como a revista "Legado", da qual é colunista, e os jornais "Valor Econômico" e "O Globo". Desde 2006, apresenta o programa "Fim de Expediente", junto com Dan Stulbach e Luiz Gustavo Medina. O blog do programa está no portal G1.
Entre em contato pelo e-mail zegodoy@hotmail.com
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